Ultimas

Free Thoughts XXII - uma escola de vida

Numa definição global é o local onde os cidadãos do amanhã são instruídos no sentido de desenvolverem as capacidades que, no futuro, lhes permitirão uma integração activa na sociedade. Num prisma mais específico e relativo ao panorama nacional, é o sítio no qual a formidável Maria Rodrigues aplica as suas belas medidas, não no sentido de promover o desenvolvimento intelectual de quem quer que seja, mas sim no âmbito de colocar Portugal nos lugares cimeiros dos “rakings” Europeus relativos ao sucesso e insucesso escolar. Caracterizando tudo isto numa simples palavra: escola.

Nunca fui grande apreciador desta instituição e sinceramente penso que lhe conferem demasiada importância nos dias correntes. Que me interessa saber resolver uma complexa equação de 3º grau, se depois não tenho desenvoltura suficiente para persuadir um tipo a contratar-me, numa entrevista de emprego? Concluindo, para quê tanto afinco em frequentar uma instituição que, na grande parte do tempo, apenas me transmite teorias do arco da velha, se depois me demonstro incapaz de responder condignamente perante as adversidades e imprevistos do quotidiano? Talvez devêssemos valorizar um pouco mais as aprendizagens retiradas da dita “escola da vida”, que tantas vezes nos auxilia quando chega o momento de optar por uma determinada direcção desconhecida.

Quando nos debruçamos sobre a indústria do wrestling profissional, facilmente nos deparamos com uma conclusão consensual: quem quer que ambicione tornar-se wrestler, terá de enfrentar uma existência regida pelas adversidades. Há que lidar diariamente com as dores, com as frustrações, com as jogadas de backstage, com as discrepâncias hierárquicas existentes no seio das companhias, com o calculismo dos promotores que apenas anseiam por lucros avultados, com balneários decrépitos que não dispõem de condições mínimas de higiene, com as semanas passadas nas intermináveis estradas e com o consequente afastamento da família.

Num comum centro de formação e desenvolvimento de pro-wrestlers, são transmitidas a dezenas de jovens sedentos por informação, as cognições básicas acerca da essência desta modalidade. Porém, em muitas ocasiões, os factores mais desagradáveis referentes à indústria, expressos no parágrafo de cima, acabam por ser eclipsados ou omitidos.

Depois, com o mergulho na dura realidade, e como repercussão do desconhecimento das partes mais inglórias da existência de um wrestler, muitos dos, outrora, classificados como prodigiosos jovens talentos, constatam, afinal, não ter o estofo requerido para serem wrestlers profissionais e, sendo assim, acabam por abdicar da indústria na qual tanta paixão depositaram.

Um bom exemplo disso é Ken Doane (Kenny Dykstra), sujeito que aqui há um pequeno par de anos foi considerado como o futuro da WWE, mas que, quando se viu perante as adversidades típicas da vida de um lutador acabou por se ir agarrar às saias da mamã a reclamar meio para o apoquentado que as suas capacidades não haviam sido aproveitadas correctamente...


Em 1948, Stu Hart funda a Stampede Wrestling (promotora Canadiana, hoje em dia, muito reputada pelos inúmeros talentos assinaláveis que desenvolveu ao longo das décadas), como tal, este necessitava de um local que lhe permitisse acompanhar com tranquilidade os novos valores que sob o seu olhar atento calmamente progrediam.

Já em meados de 1951, o progenitor de Owen Hart, adquire uma vasta mansão em Calgary, Alberta, Canada e então aí, mais precisamente na sua cave, viria a dar-se o inicio do mito usualmente conhecido por “Hart Dungeon”, simplesmente, uma das mais prestigiadas escolas de wrestling profissional a alguma vez ter existido.

Bret Hart, Greg Valentine, “Superstar” Billy Graham, Owen Hart, Davey Boy Smith, Brian Pillman, Jushin Liger, Chris Benoit, Chris Jericho e Lance Storm. Todos estes nomes são pertencentes a wrestlers detentores de carreiras cimentadas e que sempre se evidenciaram como perfeitamente capazes de responder com competência às adversidades intrínsecas à indústria do pro-wrestling. Será isto coincidência? Nem por um momento, pois em todos eles figura a similaridade de terem sido treinados na brutal Hart Dungeon.

Na primeira exibição pública do centro de treinos em foco no texto de hoje digna de referência (que ocorreu no dvd referente a Bret Hart, “Wrestling With Shadows”, documentário que podem consultar clicando aqui) é possibilitado ao espectador o visionamento de Stu a preparar para as lides do pro-wrestling, dois tenros jovens, sendo que um deles geme envolto em profundas dores, aquando do momento em que o patriarca dos Hart lhe aplica uma mera manobra de submissão.

Quando a brutalidade dos treinos ocorridos nesse centro de formação é abordada, o próprio Bret “The Hitman” Hart não tem o menor problema em admitir com transparência de que aí sofreu turtuosas dores (físicas e psicológicas), nas mãos do seu pai, que, prontamente, lhe berrava aos ouvidos palavras rudes e o agredia, sempre que cometia um erro. Em adição a isto, Bret adianta ainda que as paredes e tecto da “masmorra” se encontravam cheias de buracos, devido à violência com que os corpos dos sujeitos que aí treinavam embatiam nelas.

Para Chris Jericho e Lance Storm o treino na masmorra empreendeu-se em 1990. Por esses dias já brumosos, Stu Hart não assumiu funções como supervisor dos dois jovens que pelo seu centro de treinos passaram e limitou-se a facultar-lhes alguns livros contentores dos seus ensinamentos. Sendo assim, os principais mentores dos então inexperientes Storm e Chris, foram Ed Langley e Brad Young.

Era ínequivoco que o pai de Owen já não era o professor de serviço. Porém, os treinos mantinham-se duros e Langley, sempre rigoroso, chegava a forçar Jericho e Lance a encenarem, por sessão de treino, entre quinhentas a mil quedas no interior do ringue.

Ao que reza a história, Chris Irvine, em certo momento do seu período passado na Hart Dungeon, confidenciou, a Bret Hart (num tom de queixume) o número de “falls” que era forçado a repetir por sessão de treino, a isso o filho de Stu respondeu (pelo que consegui apurar, num tom de ironia) desconhecer o facto de a masmorra continuar activa, algo que Jericho posteriormente não levou a bem, por considerar que os Hart gozavam consigo e com o seu colega Lance.

Em Julho de 1998, com vista a ser exibido publicamente no ppv da WWF, “Fully Loaded”, é gravado, no interior da Hart Dungeon, um combate que opunha Owen Hart a Ken Shamrock. Durante o decorrer da contenda, ambos os wrestlers adoptam um estilo brutal, intenso e extremamente “stiff”, evidenciando assim, com acentuada clareza, os valores incutidos aos profissionais que tinham, ou haviam tido, o privilégio de ingressar naquele centro de treinos.

Para findar este breve conjunto de testemunhos verídicos acerca da austeridade do treino praticado na Hart Dungeon, remeto-vos para a figura de Chris Benoit, que clamou ter sido para si uma honra treinar na “Dungeon” e afirmou ainda que, no seu parecer, esta tinha, para qualquer wrestler, um valor semelhante àquele que o Vaticano tem para qualquer seguidor da igreja católica.

Retornando aos primórdios do artigo de hoje, nunca fui grande apreciador de escola. Para mim, esta não passa de um local onde nos são transmitidos meia dúzia de eufemismos baratos acerca da vida e das suas rebuscadas problemáticas. Colocando novamente uma questão: de que me vale conseguir um curso superior, se não tiver inteligência prática e a perseverança para lidar com as adversidades inesperadas que por tantas ocasiões surgem ao longo da nossa existência?

Transpondo esta analogia para o panorama do wrestling profissional, de que serve a um jovem ter o talento, o porte físico e o carisma necessário para alcançar o triunfo na indústria, caso este depois não tenha a vontade, a garra a determinação e a perspicácia requerida para compreender com clareza que o mundo desta modalidade, é extremamente injusto, incrivelmente duro, sadicamente penoso, descomunalmente extenuante e, em muitas ocasiões, consideravelmente inglório?

Era esse o segredo patente na prestigiada masmorra, que a distinguia (para um patamar melhor) de qualquer outra escola de wrestling Norte-Americana. Stu durante toda a sua existência havia lidado com o preconceito que muitos nutrem pelo pro-wrestling. Stu, aquando da formação da sua escola, estava perfeitamente ciente de que apenas alguém que saiba bem aquilo que ambiciona para a sua vida pode triunfar nesta indústria de loucos e, no término da sua carreira, mirar o passado, preconizar uma longa retrospectiva e acreditar que todo o esforço, suor, sangue e dedicação haviam valido a pena e que nada tinha sido inglório, em prol de uma imensa paixão irreflectida.

Em suma, a primeira preocupação do pai de Bret, aquando do ingresso de um novo aluno no seu centro, não era o facto de este saber realizar um suplex com toda a mestria ou ter a capacidade de aplicar com considerável engenho um sharpshooter, mas sim descobrir se esse tinha, ou não, o arcaboiço psicológico requerido para suportar uma longa existência pautada por pressão, dor, ansiedade, suor, sangue e esforço.


Antes de ser uma escola de wrestling profissional, a credenciada Hart Dungeon era uma genuína escola de vida.

Fiquem bem;)
Com tecnologia do Blogger.